sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

cilada

tristeza, o gosto amargo da cilada. está-se bem, a dor amortecida por um sol de inverno, um sorriso da filha, uma harmonia na sala. e súbito, abre-se um buraco no chão e cai-se na tristeza. ou abre-se um buraco em nós e é a tristeza que nos cai em cima. sem dar por nada, parecia (ou queríamos que parecesse?) que o caminho era penoso mas seguro. sem alçapões dissimulados por tapetes, sem poços cobertos por folhagem, sem traições ocultas por sorrisos. mas não há caminhos seguros para se escapar à tristeza quando a alegria é frágil como a chama de uma vela. numa curva do caminho, ela surge, salteadora, para te roubar o pouco alívio que te resta.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

(festa)

a chuva montou um lago nas traseiras do jardim. apareceram gansos, contrataste dois cisnes, despejamos para lá os peixes dourados do aquário das meninas. viemos cá para fora os cinco, de fatos de banho, galochas e tu com uma sombrinha brasileira. fizemos uma dança da chuva. só pela dança, porque a chuva já lá estava.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

regresso

a casa é um regresso. uma construção de partidas e chegadas. braços abertos, rostos fechados, conforme. uma edificação de sombras, sustentada numa amálgama de cimento-sentimento-ressentimento e água de lágrimas. a casa, com todas as brechas, todas as fugas, todas as fendas, é o regresso que me traz, para sempre, a ti.

domingo, 10 de outubro de 2010

outono

o frio começa a entrar pelas frestas das janelas, às vezes um pouco de chuva empurrada pelo vento consegue penetrar pelas juntas, e é quase um alívio, depois do fogo do verão. a viagem vai ser agora um pouco mais anoitecida, um pouco mais fria, mitigada por um casaco mais grosso, uma respiração com bafo, uma caneca de chá fumegante que só bebo quando arrefece.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

contigo

hoje viajei contigo. ias no lugar reservado à inocência, à janela. olhavas a paisagem e ias comentando o que te chamava mais a atenção. um líquen numa estátua. uma fresta num muro. uma cicatriz numa árvore. uma inveja num gesto. tudo coisas à vista de todos, visões óbvias, mas que só tu, do lugar especial que sempre ocupas, poderias ver. e quando desviavas o olhar da janela e me olhavas, não dizias nada. um tumulto na quietude.

sábado, 24 de julho de 2010

teste

a viagem põe à prova o viajante. não os obstáculos da viagem, ou a distância, ou as agruras e difuldades imprevistas. é a viagem o grande teste. é a viagem.

domingo, 27 de junho de 2010

o tempo à janela

o comboio tem o dom da pontualidade. não é só um meio de transporte, como os outros. ele transporta o tempo nas suas carruagens. o tempo verga-se ao comboio. toma horas para chegar à estação, compra o bilhete, espera o necessário e estipulado no horário - ou apressa o passo para não se atrasar - e, chegado o momento, sobe os degraus metálicos e toma o seu lugar. e então deixa transportar-se, porventura descansando um pouco. enquanto a viagem dura, sabe que pode confiar no misterioso maquinista, sabe que a terra faz o seu movimento regular, que não haverá atrasos nem antecipações. o tempo viaja de comboio. eu próprio o vi. ia num lugar à janela. parecia dormitar.

quarta-feira, 12 de maio de 2010

fazes da espera uma profissão de fé. é o que te resta, agora que não tens trabalho nem esperança.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

haiku 9 - revisitado

as duas ou três máscaras
que tenho
também sou eu

quarta-feira, 5 de maio de 2010

conforme

tu olhas para as possibilidades e vês coisas. vês o que pode advir delas, o bom e o mau, o desejado e o indesejado, e vês também as coisas que vão ficar por acontecer porque elas, as possibilidades, não se concretizam. tu vês coisas, ouves coisas, sentes coisas. tens com o futuro uma relação de primo. suficientemente próxima, suficientemente afastada para te envolveres com ele. conforme.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

um dia

algures na infância ficou a obediência. hoje, ainda não tenho maturidade para a disciplina, apenas para a rotina. e há-de vir um dia em que ouvirei "morre", e eu morrerei obedientemente, rotineiramente, disciplinadamente. como uma síntese.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

leve

um grão, uma semente, uma areia, pó. a tua esperança é feita de partículas, minúsculos nadas que apanhas do ar e espalhas pelos bolsos. e é com essas posses que sais para a rua, quase feliz, sentindo-te afortunado, passeando com uma leveza que só é possível porque o nada é leve.

haiku 9

tenho uma
ou duas máscaras.
o resto sou todo eu.

domingo, 21 de março de 2010

a aranha

o engano é uma aranha laboriosa, paciente e engenhosa, tecendo a sua teia nas esquinas da realidade. sabes do que falas porque te enredas demasiadas vezes nessa teia, demasiadas vezes ficas suspenso nessa esquina, pendendo da realidade.

terça-feira, 2 de março de 2010

fenda

uma fenda enorme interpôs-se entre ti e o futuro, o teu futuro. os dias passam mas a distância entre vós não se reduz à medida que avanças futuro dentro, ainda que tenhas a determinação de um exército avançando em território que quer subjugar. porque o futuro recua à medida que tu avanças, e recuará sempre de cada vez que tu avances, e quanto tu mais avançares mais o futuro recuará. essa é a fenda, a fenda é o teu presente.

sábado, 27 de fevereiro de 2010

haiku 8

a coragem vê
o medo
espreita

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

coração ou inferno

ninguém sabe ao certo o que irá ser lembrado quando o futuro tiver reduzido a cinzas o que hoje te consome. tu não sabes do que te lembrarás. nem saberás o que fazer das tuas memórias, ou em que lugar do coração ou do inferno as guardarás.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

o frio permanecerá

o teu gulag de gelo, de nevoeiro e de distância. e o gelo derrete-se, o nevoeiro dissipa-se, a distância encurta-se. o frio permanecerá por mais tempo, tu sabes isso, só não sabes por quanto tempo, se muito, se pouco. o teu gulag, o murro no estômago, o enjoo, o acidente que te deixa numa entorpecedora invalidez por dentro. o teu gulag, o teu caminho feito de gelo, nevoeiro e distância.

sábado, 23 de janeiro de 2010

só um vagão

para ti é só o vagão atravessando a estepe. há muito te esqueceste ou te abstraíste que há uma locomotiva e outros vagões, à frente e atrás do teu. do lado de fora, é só um vagão, o teu vagão, que vês, andando no seu ritmo sonâmbulo, impelido para a frente por fantasmas metálicos, a fricção do ferro dos trilhos e das rodas chispando faíscas, e uma indiferença grandiosa à sua passagem. ninguém vê este vagão?, e perguntas-te como isso é possível, se ele atravessa cidades, vilas, aldeias, cruza pontes, soma fronteiras. ninguém o vê? então como é que tu vais dentro dele e o vês passar? e ninguém o trava?

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

o que me há-de matar

o que me há-de matar é saber que vou errar até ao fim, mil anos que viva. o que me há-de matar é a fome com que devoro o optimismo. o que me há-de matar é uma dor no peito que não se decide a doer. o que me há-de matar é esta espécie de ausência de morte em que vivo.

a placa

fechei para o mundo. como uma loja que não tem mais a quem vender a sua mercadoria obsoleta e sem préstimo. sapato sem par. perfume sem cheiro. riso sem esperança. futuro sem infância. fechei para o mundo e coloquei uma placa na porta que diz: já não volto.