quarta-feira, 9 de maio de 2012

ontem, num pátio

ainda ontem parecia tão longe, parecia tão cedo, o futuro. parecia que ia haver tempo. parecia que o tempo esperava por mim e que nessa espera se distrairia de mim, facilitando-me a fuga. eu não queria crescer. queria ficar a brincar no dia de ontem como num pátio. queria que o futuro fosse apenas um pouco futuro, nada de definitivo, nada para levar muito a sério.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

sob as minhas veias corre um rio

Sob as minhas veias corre um rio
Rio de nada, nervos e aço
Subterrâneo, estranho e frio
Num leito estéril, seco, escasso.

Afluentes do desejo e do medo
Desaguam nesse rio já sem voz
Afogados nas águas de um segredo
Nascido na turbulência da foz.

Das margens crescem sonhos como teias
Prisioneiros de si mesmos nesse fio
Que tece, ensanguentadas, minhas veias.

Não há sonho que resista a esse rio.
Esperança arrastada pelas cheias
Que brotam, violentas, do vazio.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

agenda

tinhas a tua vida na agenda, a agenda na mesa-de-cabeceira, a mesa-de-cabeceira ao lado da cama, a cama no quarto, o quarto na casa, a casa na tua vida, a tua vida na agenda. um círculo perfeito. não, uma espiral, uma escada de escher, um infinito de trazer por casa. tinhas a tua vida na agenda. um dia saíste para a rua e apercebeste-te que não trazias a tua agenda. e percebeste que tinhas a tua vida de volta. não voltaste à tua casa, ao teu quarto, à tua cama, à mesinha-de-cabeceira, à agenda. voltaste à vida.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

terça-feira, 20 de março de 2012

perguntas mais frequentes

se a tua resposta for "não sei", qual será a pergunta? se a pergunta for "e agora?", qual será a tua resposta? se a resposta não importar a ninguém, a quem importa a tua pergunta?

waiting for a train - hugh laurie

terça-feira, 6 de março de 2012

herança

instruíste os teus filhos na arte do cinismo e da ironia apenas para dotares o teu futuro de um diálogo inteligente. poderias ter escolhido o amor. mas a ti não te interessava a descendência, interessava-te o conceito mecânico da transmissão dos genes. a herança que deixas aos teus filhos é isso: um edifício por habitar. não uma casa de família.

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

haiku 11

a ilha rodeia-te
por todos
os lados

mais a norte

o meu tempo é o do norte
é no norte que o tempo é meu inteiro
pode esta gente ao sol ter a sorte
que a minha é ter no norte nevoeiro

o meu tempo é o do cinzento
dos dias que parecem esquecidos
mas que lembram na vibração por dentro
as festas com orquestras dos navios

o meu tempo é o da morrinha
uma forma muito própria de ser morte
humidade que escorre pela espinha
anunciando a vida mais a norte

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

roldana

a urgência é agora o teu sentido mais apurado. o tempo revestiu-se não de uma animosidade mas de uma intenção, de uma vontade própria, de uma determinação activa em relação a ti. não o controlas, como jamais o controlaste. mas a tua antiga indiferença era quase uma forma de controlo. agora não. tens uma pressa que não é mais do que a necessidade que o tempo pare. és, sem o quereres, uma roldana que facilita o fluir dessa corda tensa, és parte do mecanismo que põe tudo em marcha, já só és o tempo que te resta.

terça-feira, 31 de janeiro de 2012

fui dois

noutra vida fui dois. não esta coisa una, argamassada, compacta que sou hoje. sei que fui dois como outros têm a certeza que encarnaram budas ou marlenes dietrichs. eu fui dois ao mesmo tempo. fui o que passa na rua e o que está à janela a ver-me passar. fui dois destinos em dois corpos e, garanto, nunca fui tão indivizível como fui nessa vida.