terça-feira, 29 de dezembro de 2009

sangria

dor que se esvai
numa sangria
e vermelho que é
e dor que não fosse
olhar destreinado
quase diria
vinho entornado
da alegria

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

peso, fim

qual é o peso do peso? pergunto, subjugado que estou à força de um peso insuportável, sabendo embora que há pesos mais insuportáveis que o meu. onde é o fim do fim? e a resposta paira nesse sítio e eu tenho o peso do medo que me impede de buscá-la.

sábado, 12 de dezembro de 2009

branco carvão

o carvão risca a parede branca com um grito de raiva. compreendo o carvão. compreendo a parede. só não compreendo quem ameaça quem, qual dos dois é o verdadeiro agressor, se é que alguém agride na manifestação da sua natureza. carvão e parede branca. um risco é sempre um risco.

sábado, 5 de dezembro de 2009

fel

o espaço preenche-se de pequenas presenças e grandes ausências. o tempo, esse, é mais difícil de ser preenchido. e tu sabes isso porque tens com o tempo uma relação hostil, de irmão desavindo, um ressentimento como um cano roto, gotejando fel.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

haiku 7

dinossauros
a louca correria
dos guindastes

haiku 6

roxo
a flor
dos cemitérios

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

as tears go by - marianne faithfull (1965)

gota

à tua frente, em todo o teu redor, o território desolado da mágoa que causaste. não te permites o choro embora só queiras chorar e abrigar-te debaixo de alguma coisa segura, nem que apenas ilusoriamente segura. o amor podia ser um abrigo. mas o desespero é terra queimada e a confiança uma estrada de sentido único. causaste a mágoa. terás que a beber até à última gota.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

haiku 4

dói-me
a tua dor.
dá-ma.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

passo

sabes quando estás a dar um passo e tens a precisa noção de que estás a iniciar um caminho completamente novo, irreversível, em direcção a algo desconhecido? não sabes ainda se será um caminho de dor ou de felicidade, trágico ou leve, longo ou curto. apenas tens aquela nitidez de consciência que te deixa perceber que estás a penetrar no cerne da mudança, de uma qualquer mudança.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

fantasmas no vagão

és levado mais do que vais. as pernas que se movem são as tuas, mas a força que as faz andar não te pertence. o vagão vai cheio com os teus fantasmas. são eles quem te empurra. o que querem de ti os teus fantasmas? tu achas que é uma espécie qualquer de verdade. mas enganas-te porque eles não querem saber disso. querem apenas a tua vontade.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

engano

pareço-me vagamente com alguém que não eu, mas sei que sou eu, não adianta enganar-me. sou eu vagamente. ao que parece, engano-me, sendo eu.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

haiku 3

um vapor
rodeia-te
o silêncio

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

terça-feira, 29 de setembro de 2009

arame

a conversão do desespero em esperança nunca poderá dar origem a um futuro sem medo. mas é dessa matéria que o futuro é feito. porque contém em si a raiz do improvável, a ameaça de não concretização, e uma alienada submissão ao irracional e ao milagre. uma vida vivida nesse arame consome e ao mesmo tempo alimenta. uma vida de arame. moldada ora ao desespero ora à esperança.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

possibilidade

a possibilidade da alegria é isso mesmo, uma possibilidade. um milhão em mil. mas às vezes, contra todas as expectativas, ela acontece. e então ficas alegre. uma criança de quatro, cinco anos (há quanto tempo brincaste com a alegria pela última vez?), com mais nada para fazer na vida senão ser feliz e alegre.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

poço

um apaziguamento como a água parada de um poço.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

confronto

acabas por aceitar a violência como se aceita um vizinho importuno. fazes por seguir a tua vida tentando esquecer-te que ela existe mesmo sabendo que mais cedo ou mais tarde, ao saíres ou ao entrares em casa, te vais confrontar com ela e que ela te vai tirar do teu sossego e te vai tirar mais alguns minutos de vida. a violência entrou na tua vida. conseguirás ainda evitar que ela se espalhe da tua vida para a dos outros? conseguirás contê-la em ti?

terça-feira, 8 de setembro de 2009

um deles

e se eu fosse um deles? acordo sobressaltado com esse pensamento, sem saber se o sonhei, se o antevi, se o pensei de facto. e se eu for um deles? se eu for um deles, se eu me vir do lado de lá de mim convencido que ainda sou eu mas já não o sendo, se eu for um deles é porque já estou morto sem o saber.

esquecimento

não te esqueço, dizes, mas é uma promessa que sabes que não podes cumprir. os dias entopem-te de coisas que não podes esquecer, coisas bem mais importantes na ilusória escala das coisas importantes e, pensas, é natural que alguma coisa se esqueça, que alguma coisa fique para trás. e quem fica para trás, esquecido, acaba sempre por ser alguém, alguém a quem ainda ontem à noite ou hoje de manhã prometias não te esqueço.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

sob a árvore

um abrigo sob a árvore, aninhado junto às raízes salientes do tronco, semi-enterradas na erva, muito quieto, o olhar nos trilhos ali a poucos metros, os ouvidos atentos ao nunca mais chegar do comboio. pode existir uma ternura muito grande na espera, não sei se o disse agustina. estás aí sob a árvore à espera que o comboio passe para que nesse instante, quando ele passar em frente aos teus olhos com o seu barulho de ferro contra ferro, tu te imaginares seu passageiro. e quando por fim o comboio passa, tu do teu abrigo vês-te passar num lugar sentado à janela, olhando as árvores.

domingo, 30 de agosto de 2009

how my heart behaves - feist

por inventar

uma estranheza e um puxão. estás no meio de uma rua movimentada, numa alienada ausência, não te lembras se ias atravessá-la, ou de que lado vinhas, ou para onde ias, e ficas paralisado, enquanto os outros transeúntes seguem o seu caminho apressado na passadeira, uns no teu sentido, outros no oposto, mas todos seguem sem se quedarem, quem pára no meio de uma rua movimentada de gente e de carros? e o sinal para os peões fica vermelho e tu já és o único no meio da passadeira, no perfeito centro das faixas brancas e pretas, não estás virado para nenhuma das margens mas antes virado de frente, um minúsculo bote afrontando um cargueiro gigantesco num mar violento. é quando alguém te dá um puxão pelo braço, arrasta-te até uma das margens, "você é louco, homem?", e te deixa ali no passeio, algumas pessoas a olharem para ti, tu numa estranheza imensa porque não deverias estar naquele lugar, deverias estar muito longe, num lugar sem carros e sem gente, numa cidade por inventar, banhada por outro oceano.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

interromper

não sei o que me impede de interromper esta viagem nem tão-pouco o que me levaria a interrompê-la. sinto que há quem seja filho de um caminho como de pais reais, com laços de sangue, genes partilhados, vínculos indestrutíveis a ligá-los. há uma conexão irremediável entre mim e o meu caminho? ou é tudo bem mais ténue e frágil que um simples voltar à direita ou à esquerda inicia um caminho novo e o que é agora se desfaz em pó?

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

debaixo do medo

escondes-te debaixo do medo sem saber ao certo o que temes. sabes que te apavoram muitas coisas, umas concretas e palpáveis, outras nem por isso, nem sequer verbalizáveis. mas o medo, como uma capa de doença ou de força, funciona para ti como um abrigo. estando sempre sob a alçada do medo, mais medo que venha apanha-te na sua própria casa, como um convidado. e tu vais vivendo assim, com medo e estranhamente protegido por ele.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

the build up - kings of convenience + feist

fraude

retorno com a sensação de nunca ter sido daqui. e, no entanto, dizem-me: esta é a tua casa, aquela a cadeira onde se sentava a tua mãe, ali o quarto onde dormias, lá fora o pequeno canteiro de flores que pisavas descuidado. mais do que não me lembrar, eu não me reencontro aqui, nenhuma fibra do meu ser emite um sinal, "aqui estás tu", nenhuma sombra que possa reconhecer, nenhum eco. retorno e penso que fraude eu sou, se até o meu passado faz de mim um estranho em mim.

domingo, 2 de agosto de 2009

recuperação

então recuperas um breve fluxo de energia com o mesmo espanto atemorizado com que recuperarias um filho perdido. a medo, duvidando da realidade do momento que estás a viver, medo de não ser verdade, de não seres capaz. e o que vais fazer com essa energia, vais orientá-la para onde, se o teu filho se perdeu há tanto tempo e tu já mal sabes o seu nome?

quinta-feira, 30 de julho de 2009

queda

um caminho feito em profundidade, descendo, descendo sempre, uma descida longa e demorada na aparente horizontalidade do trajecto, ilusoriamente sem fim à vista porque existe sempre um fim. descendo, descendo sempre, sem metáforas - nem um ramo a que deitar a mão para abrandar a queda - no caminho.

terça-feira, 28 de julho de 2009

cerco

o pavor do cerco. paredes que se movem na tua direcção mesmo se tu as não vês, especialmente se tu não as vês. uma asfixia lenta mas inexorável, o ar que se esvai, sangue comprimido a latejar, sentindo a estreiteza cada vez mais sufocante das veias, da carne a rodear as veias, da pele a cobrir a carne, das paredes a cercar a pele.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

lado nenhum

já não tens um espaço a que chames teu, perdeste-o ou abandonaste-o, não importa. ou foste expulso, também já não importa. no momento em que puseste o pé no estribo desse comboio invisível, quando tomaste o teu lugar na carruagem ao lado de outros viajantes, igualmente deserdados de um lugar próprio, igualmente em trânsito para a eternidade hedionda do círculo, nesse momento disseste adeus ao espaço que te pertencia e passaste a ser de lado nenhum.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

controle

a esperança é uma droga gratuita em que por vezes te deixas enlevar. conheces os seus efeitos e no início até acredito que a controlas, mas mais depressa do que imaginas é já ela quem te controla e tu já perdeste a noção das tuas expectativas e a consciência dos teus limites. a esperança subjuga-te e, mais do que isso, abandona-te derrotado.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

haiku 2

o comboio confia
no paralelismo
dos trilhos

terça-feira, 14 de julho de 2009

agora

a recordação é uma porta interdita, a memória um armário fechado, a nostalgia um livro proíbido. toda a matéria que compõe a história foi triturada e atirada ao vento do alto da mais alta torre que é a privação de passado. a tua herança é esta, um relato de viagem que se inicia no preciso momento em que és agora. nem um segundo antes.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

domingo, 12 de julho de 2009

caminho

existe um caminho da perdição e um caminho da redenção. não é certo que quem faça um faça o outro. e há quem se confunda em tais caminhos. quantas vezes pensas estar a salvar-te e na verdade estás a perder-te cada vez mais? a viagem é longa, o engano é longo.

a soma das perdas

o peso incomensurável da perda. a soma de perdas concretas, diárias, umas maiores do que outras, mais pesadas, mais difíceis de suportar, perdas reais que se acumulam umas sobre as outras, se misturam numa magma ao fim de um tempo irreconhecível, destratificada, apenas percebida, sentida, conhecida como uma perda só, única, sem tamanho. “tudo quiseste tudo perdeste”, ouve a avó murmurar-lhe ao ouvido, a voz vindo de um lugar ao longe mas sentindo o bafo da velhice entrar-lhe pelas narinas, palavras em gengivas, sibilinas e escarninhas, como um aviso de serpente antes ignorado e agora jubiloso na vingança dos factos. tudo quis mas não é esse o tipo de perda que agora o subjuga, ou não é só isso, essa é apenas uma parcela minúscula no cômputo da grande perda, algo que vai muito além das coisas que se podem ganhar, conquistar, encontrar e que se podem perder também.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

clandestinidade

viajo clandestino por isso as pessoas que me vêem sentado à secretária a trabalhar não sabem que eu viajo. nem sabem como me desilude falarem de mim com ausência de saudade, como se eu estivesse ali com elas, à frente delas, a dialogar com elas. porque eu na verdade não estou ali, há muito que deixei aquele lugar que era a minha secretária, e todos os outros lugares que um dia me foram familiares, tristes ou felizes. eu já não estou em nenhum desses lugares, e estranho sempre as pessoas não falarem de mim como eu estando morto, ou desaparecido, ou exilado. porque é morto, desaparecido e exilado que me sinto a maior parte das vezes.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

por ti

por ti mentia
o amor tem tanto de cobarde
como de quebrável
face à verdade

segunda-feira, 29 de junho de 2009

risco de giz

porque pensei que as coisas poderiam ser diferentes? a probabilidade do mal é infinitamente maior que a do bem, a justiça uma balança viciada, a esperança uma histeria tonta, a realidade é esta e só esta: o meu destino está marcado a pó de giz. precário, certamente, mas certo como um risco branco no asfalto preto. o bem, o mal, já me confunde o que mais me convém.

de repente

e de repente o amor lembra-te quem és. e, antes disso, recorda-te que és. um homem anula-se até limites inimagináveis, desce a profundezas das quais é humanamente impossível ressurgir, retalha-se em milhões de pequenos cortes que reduz o corpo a uma poça de nada e sangue, reduz o pensamento a um som, o baque monótono e pardo do coração, o restolhar das vísceras, rasteja à condição de insecto. e de repente o amor, vindo do nada, ou vindo de longe, ou do esquecimento, ou da morte, ou da luz ou da sombra, de repente o amor irrompe em ti e tu estremeces. como um princípio.

cais

quando parti, o cais foi quem me disse adeus. estou eternamente ligado a esse cais tosco e antiquado, a única coisa viva presente na hora da minha despedida. ele lá estava, imóvel mas resoluto na decisão de ficar ali a ver-me partir, a afastar, até que eu e ele nos apagassemos na distância um do outro. nas traseiras do cais (a entrada da velha estação), um pequeno jardim estranhamente bem arranjado e cuidado com amores-perfeitos de várias cores tinha-me saudado ao passar por ele. depois, o cais. nem o homem da bilheteira, nem os outros passageiros, nem a voz do altifalante. apenas o cais compreendeu que eu partia sabe-se lá para onde, sabe-se lá para regressar um dia ou não.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

cicatriz

uma cicatriz ao contrário. nascida de dentro para fora, brotando, como se algo dentro de ti precisasse de sair com urgência, uma fenda por onde escapasse a tua angústia, o teu medo, o teu nojo. uma cicatriz que nenhuma acção exterior provocou, que nenhuma navalha manobrada por nenhum agressor golpeou. como se sutura uma cicatriz por dentro?

segunda-feira, 22 de junho de 2009

ajuda

o espírito de ajuda dá a dimensão da tua humanidade. sobretudo se tu és quem precisa da ajuda. por isso, para muitos (para ti, também?) ser ajudado é um acto de suprema violência, uma capitulação humilhante, uma provação maior que a ausência de ajuda, uma extrema necessidade. a ajuda só é tolerável quando se precisa dela, escreveu steinbeck.

haiku 1

o secreto gozo
da condução em contramão
do idoso

domingo, 21 de junho de 2009

fuga

a partir de que momento dormir passou a ser a fuga? lembro-me que antes o sono era apenas sono. deitava-me à noite e o cansaço do dia encarregava-se de me cerrar os olhos, sem esforço nem pensamento, um sono funcional, animal, intrínseco. foi assim durante muito tempo, diria quase sempre foi assim. mas a partir de um certo momento, que agora não consigo determinar, o sono foi-se revestindo de uma outra forma, transmutou-se no acto de dormir, como se o estivesse a encenar, o que tinha de natural foi-se esbatendo até à total artificialidade, passei a ser eu a procurar o sono e não o contrário, o sono a procurar-me. as paredes dos labirintos do sono foram como que se enterrando no solo, até desaparecerem por completo, deixando-me numa aridez plana, como se dormisse de olhos abertos. olhando um deserto.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

a porta

o instante decisivo: ouves passos do lado de lá da porta e pensas rápido o que fazer. antecipares-te e abrires a porta, fechares a porta à chave, esconderes-te atrás da porta, não fazeres nada. a consciência das opções esmaga-te. e são apenas uns passos do lado de lá, não sabes sequer se é o inimigo. ouves os passos cada vez mais perto e dá-te tempo ainda para transferires para a porta a tua angústia. dás um pontapé na porta a ver se do embate do teu pé com a madeira se dá alguma revelação. não encontras a resposta, ou ela é a dor que sentes no pé. o tempo esgota-se. o puxador roda. a porta abre-se.

terça-feira, 16 de junho de 2009

uma voz que se ouve (valter hugo mãe + amigos)

GOVERNO - Meio Bicho e Fogo from 8 e Meio on Vimeo.

paisagens

choca-me a indiferença da paisagem à minha passagem. será que não vê o horror nos meus olhos, não se apercebe do tremor das mãos, do batimento trágico do coração, não sente o cheiro do meu medo, não se comove com a minha sorte? eu sempre depositei nas paisagens uma grande esperança porque acreditava que um dia, quando eu precisasse, elas me devolveriam a alegria que vezes sem conta lhes derramei do olhar. puro engano. esta paisagem que olho neste instante não quer saber de mim, se morro ou se vivo, se choro e porque choro. está entretida na sua beleza, na sua arrogante natureza autosuficiente, e não vê como eu preciso dela enquanto passo. estou em trânsito e as paisagens desistiram de me acompanhar.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

espaço, vazio

espaço para mais quem? não sobra espaço na imensidão do teu desolamento, tu ocupa-lo todo, açambarcas os interstícios entre o tijolo e a massa, os porões estão cheios de ti, as arcas abarrotam de ti, os depósitos vertem-te, tu escorres, tu inundas. gostarias de ter alguém aqui contigo? e silêncio, já agora. mas o vazio enche-te.

paragem

como qualquer outro meio mecânico de transporte, o teu corpo às vezes pára. tu sabes porque ele pára. e então reabastece-lo, duas palavras de autocompaixão, autocombustão, e ele reengrena, volta ao ramerrão, faz-se de novo à estrada. até ao próximo cansaço, à próxima paragem.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

jornada interminável

há um ritmo invisível na quietude da vítima. imaginem: um homem amarrado com correntes a um poste, um homem pendendo pelo pescoço de uma corda, um homem de pés atados num círculo fechado de outros homens, um homem cego parado. a vertigem transforma-se no próprio destino como uma cidade. onde vimos parar sem querer, por acaso, empurrados. e nunca acaba porque nunca chegamos a chegar.

culto

Cultiva a desilusão iminente
como um cereal ou uma virtude

Engendra máquinas de fazer tristezas
e sê competente a manobrá-las

Enche os olhos de péssimismo
como de uma paisagem ou um futuro

Faz dos acasos azares
e foge da sorte como fogo da água

Inventa destinos de rigoroso infortúnio
na distração dos rostos felizes com que cruzas

Alimenta as fúrias
como a um filho

quinta-feira, 11 de junho de 2009

a caminho do gulag

não vou no vagão sinistro de um comboio atravessando estepes geladas, não vou na caixa aberta de um camião amontoado com outros como gado. estou sentado no sofá de minha casa e no entanto faço esta viagem a caminho de um gulag qualquer, igualmente mortífero, igualmente resistente. quando parti, quando chegarei? nada importa, agora que estou em viagem.